sexta-feira, 11 de junho de 2010

Mais um pedaço


Lia passeava pela casa. Parou em frente ao microondas. Três e meia. A garota suspirou, estivera fritando na cama por cinco horas seguidas e não pregara o olho, sequer um cochilo. Abriu a geladeira, mesmo sabendo que não encontraria nada dentro. Água, alface, mamão, maçãs; fez uma careta. Fechou a porta do eletrodoméstico e respirou fundo, procurando diminuir a agitação.
Há várias noites sua situação era a mesma. Simplesmente não conseguia dormir, não importava o quanto tentasse. Testara chás, contar carneiros e até tomar relaxantes musculares; nada adiantara. Era como se algo estivesse errado, fora do lugar. A garota andou preguiçosamente até a sala, onde se jogou em um dos cantos do sofá. Permaneceu ali, encolhida, observando os desenhos que a luz do poste sobre a cortina de renda produziam no chão.
 Após alguns minutos, algo sobressaltou Lia, que pulou do sofá, assustada. Poderia jurar ter visto uma sombra cruzar aquele desenho. Das opções, uma com certeza acontecera. Ou algo passara sobre a lâmpada do poste, ou na varanda, ou ali mesmo na sala. Ou ela estava mesmo insana.
Pela forma e velocidade da sombra, só poderia ser a última hipótese. Mas por que aquela sensação, então? Como se as coisas estivessem voltando para o lugar? Nos últimos dias, Lia sentira como se houvesse algo faltando. E agora, depois de ver aquela sombra tão breve e efêmera, sentia algo diferente. Não como se tudo estivesse no lugar, mas como se isso fosse acontecer em breve. Como quando se sabe que alguém de quem se sente muitas saudades está prestes a retornar de uma longa viagem.  Mordendo o lábio inferior, Lia levantou do sofá e afastou a cortina que cobria a janela, procurando algo de diferente do lado de fora. Não estava com medo. Na verdade, desejava que realmente houvesse algo ali, algo que a fizesse lembrar do que ela sabia que esquecera. Algo que a fizesse sentir em casa. Seus olhos se dirigiram ao céu. Lá, sobre o manto negro, uma lua cheia e amarelada a saudava, tão solitária quanto a adolescente, que tinha agora o olhar borrado pelas lágrimas. “Mas o que está acontecendo?” pensou. Fechou os olhos com força, impedindo as gotas de caírem. Sacudiu a cabeça e fechou a cortina, com um suspiro, o coração estranhamente acelerado. Voltou para o sofá e fechou os olhos, cansada. Não demoraria um minuto até que caísse em sono profundo.

Castiel olhou mais uma vez pela janela, nervoso. Ela quase o vira. E se visse, o que faria? Queria convencer a si mesmo de que não se mostrava para não assustar a garota. Mas sabia que era simplesmente medo de que Lillian não o reconhecesse. Não sabia como conseguiria encarar o olhar de dúvida, o vazio na expressão tão querida quando ele se apresentasse. Por entre os espaços da renda, viu que a garota já dormia. Respirou fundo, concentrando-se para adentrar ao aposento.
Ela dormia, serena. A respiração suave e regular. Castiel observou, estupefato, os traços delicados da garota a sua frente. As sobrancelhas em um desenho suave sobre os olhos cujo verde permanecera impossivelmente intacto. Os lábios de contorno definido estavam cerrados em uma linha reta, a cortina escura formada pelos fios longos e soltos cobria a almofada, alguns fios sobre seu rosto. Parecia tão frágil enquanto dormia, com os braços cruzados, protegendo o corpo do frio. Com cuidado, tocou-lhe suavemente a face. Lutou contra as lágrimas. Se alguma dúvida houvesse resistido, ela teria se esvaído completamente naquele momento, como areia ao vento. Todos aqueles sentimentos. A vontade quase incontrolável de abraçá-la, sentir seu corpo abrigado sob o seu.
- Lillian. – Sussurrou, comovido.
Lembranças de anos anteriores o invadiram violentamente. Imagens que ele houvera lutado para não rever em sua mente. Lillian correndo, esbarrando com ele na floresta. Sorrindo um sorriso breve e tão precioso enquanto olhava para ele. O acompanhando até a porta de sua casa. Em seu colo, gemendo de dor pelo tornozelo quebrado. Em seus braços, suspirando de prazer. Com a mão em seu rosto, tentando consolá-lo. Com lágrimas nos olhos enquanto ele se afastava. Ensangüentada, enquanto ele gritava. Uma lágrima amarga escorreu por sua face. Com o peito pesando de remorso, beijou a face de Lia demoradamente, sentindo a pele suave sob os lábios, e partiu.
(...)
- Castiel! – O grito saiu em um movimento involuntário, como respirar. Ela arregalou os olhos, ofegante. Um nome. Nada além de um nome. Um nome que, mesmo tendo sido pronunciado pela primeira vez, lhe soou como se o tivesse chamado outras milhares. E um nó no estômago que a deixava angustiada. Ela levantou do sofá, ainda confusa, para olhar mais uma vez no microondas. Três e cinqüenta. Coçou levemente o rosto, que formigava. Em movimentos automáticos, dirigiu-se de volta ao sofá e deixou que suas pálpebras pesadas se fechassem novamente.