sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Passado Vivo


Nunca tive problema com ruas escuras e desertas. Na verdade, tenho uma sensação reconfortante quando passo por uma rua assim, não sei direito o porquê. É quando eu tenho o sentimento mais próximo do que chamam de paz. O silencio, a ausência da luz que fere meus olhos e me expõe.
 Era em uma rua exatamente assim que eu passava no caminho de volta da faculdade. Havia saído mais ou menos uma hora e meia mais cedo do final da aula, que acaba as dez da noite. Mas naquela rua era como se fossem várias horas mais tarde. O silencio e a escuridão lembravam a madrugada. Permiti-me entorpecer por alguns minutos, a estranha sensação de paz tomando conta de mim. E fui andando sem prestar muita atenção em meu destino.
 Quando me dei conta, já estava lá. O lugar que eu evitara durante todos os dias em meu percurso para a faculdade, desde que começara meu primeiro ano, há algumas semanas, o lugar responsável por grande parte das minhas cicatrizes. Quando me dei conta, já estava lá, em frente a minha antiga escola.
 Desde o primeiro dia de aula, eu andava tomando o cuidado de passar sempre na outra rua. Se eu não olhasse para o lado, não a veria, não me lembraria. Bastaram alguns minutos de distração para que todo o autocontrole construído cuidadosamente fosse buraco a baixo.
 Surpreendi-me olhando por entre as grades do portão, estagnada. Era simplesmente mais forte que eu. As cenas brotavam diante de meus olhos como flashbacks estúpidos dos filmes mais clichês. Eram absurdamente reais.
 Estudara naquele lugar da segunda à sexta série, o período mais longo que já permaneci em uma escola.
 Ali estava eu, aos dez anos, carregando uma mochila de carrinho, passando pela quadra e adentrando ao pátio pelo portão lateral. Podia ver a coordenadora entrando com o carro pelo portão grande. As portas da frente do colégio sempre fechadas. Eram apenas para pais e visitantes. Sempre me revoltei com aquilo. As portas da frente eram o acesso mais rápido, tanto ao pátio quanto as salas de aula, mas éramos obrigados a dar uma volta enorme e passar pela lateral. Me sentia como um cachorrinho obrigado a usar sua portinha.
 A mochila de carrinho também me irritava. Era difícil arrastá-la pelo chão de cimento, era difícil carregá-la escadaria a cima para a sala de aula. Chegaria a carregar dez quilos por três andares.
Passaria pelo portão lateral, esperaria alguns minutos no pátio até que o sinal tocasse e subíssemos para as salas, onde a pior parte sempre acontecia. Chacotas apenas ou agressões mais consistentes. A solidão nunca me incomodou, o que machucava era ser obrigada a estar em companhia de pessoas que faziam questão de apontar cada um dos meus defeitos, inclusive os inexistentes.  Era uma espécie de esforço sobre humano que eu fazia para caminhar passo após passo até estar lá dentro.
Acordar às seis da manhã, lavar o rosto, escovar os dentes. Por a roupa, andar até a ponte e pegar a barquinha. Chegar ao outro lado e pegar a perua. Tudo para descer bem em frente às portas do inferno.
Claro que não eram as portas do inferno, era simplesmente assim que eu me sentia ao chegar lá. Claro que aquelas crianças não eram monstros, era simplesmente como eu as via. Mas a dor era muito real. As agressões de todos os tipos também.


 Eu ainda ouvia o murmúrio típico de um dia começando em uma escola de disciplina rígida. O murmúrio se tornava um ruído realmente irritante quando as crianças que eram cuidadas na creche ao lado chegavam em grupo. A tão querida calma, tão rudemente rompida.

As minhas mãos ainda seguravam as grades do portão. E eu imaginava como era possível ver a mim mesma, anos atrás, andando ali, na minha frente. Fazendo o mesmo caminho de todo dia, de cabeça baixa e indiferente a minha presença.
Algumas coisas estavam diferentes. Os bancos, antes singelos, agora eram feitos de mármore. Os muros haviam ganhado altura, com o acréscimo de algo que parecia com uma série de janelas de vidro. Olhei para cima e vi que uma luz do ultimo andar estava acesa, imaginei quem estaria ali. Me lembrei da escadaria na qual eu penava, carregando a mochila. Segundo uma estudante que um dia viraria minha amiga, havia uma escada rolante agora. Uma escada rolante na escola. Como aquilo teria me ajudado. Como aquilo provavelmente dobrara a mensalidade...


Um pequeno grupo de pessoas passa por mim. Percebo que eu estou fazendo um grande esforço, praticamente enfiando minha cabeça entre as barras para poder enxergar, inconscientemente.
Aquela cena deveria estar sendo bizarra para quem assistia. Uma garota andando normalmente pela rua, para repentinamente na frente de uma escola, põe as mãos nas barras do portão e passa vários minutos observando o local. Será que alguém chamou a polícia para denunciar tentativa de invasão?
Mesmo notando essa situação, minha mente insiste em ficar divida entre o presente e o passado, quase um tranze. Eu poderia ficar a noite inteira ali, vendo tudo acontecer de novo diante dos meus olhos. Eu tento voltar à realidade, mas quando viro o rosto meus olhos param na quadra, e eu me vejo ali, entrando para treinar handball. Correndo para não chegar atrasada e amaldiçoando quem teve a idéia de colocar os horários da educação física no sábado de manhã.
Há um grupo de homens do outro lado da rua, me olhando, talvez. “Hora de voltar ao presente. Por favor, vamos!”. Por mais insano que o apelo pareça, minha mente finalmente voltou a me obedecer. Ainda não vejo a escola totalmente vazia, as lembranças estão meio vivas, mas eu me obrigo a ir embora. O que é passado é passado. Não há como mudar, não faz sentido voltar.


Queria prometer a mim mesma que tudo havia acabado, mas era difícil me convencer enquanto meu me afastava ouvindo gritos e risos de crianças ao fundo...


4 comentários:

  1. Realmente me identifiquei, os anos que passei nesse lugar tambem nao foram nem um pouco agradavéis, tão desagradaveis que são poucas as lembranças que tenho de lá, lembranças que me obriguei a esquecer! Quase repeti por causa desses horários de educaçao física ¬¬'. Geralmente sou péssima em tomar decisoes, mas com certeza uma das melhores escolhas que eu fiz foi ter mudado de escola.

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  2. Bom, não foi na mesma escola mas passei por coisas assim tambem... o bom é que foi um ano terrível mas SÓ um rsrs. Saí de lá antes que enlouquecece hehe.
    Things will get better. Be strong ;)

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  3. Lele disse:

    Não sei se o termo sadomasoquismo se aplica a tortura mental, por que se corresponder...
    Enfim, você adora um perigo neh, uma rua escura e silênciosa, depois ficar parada sem prestar atenção em volta, depois num reclaaaama!
    Mas, eu tenho que admitir, eu não sei escrever uma crônica e essa realmente foi interessante, então tenho que te parabenizar ^^

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  4. Amorzinho, passei por isso minha vida toda. Na escola, cada ano era pior que o outro. Mas, hoje, sou grata por tudo isso. Se não fosse por toda essa "tragédia" não seria quem sou hoje. Seria apenas mais uma... E provavelmente estaria casada com um bando de filhos catarrentos!!! Um dia vc vai sentir o mesmo que eu....

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